ALBUM REVIEW | Utada Hikaru – Hatsukoi (2018)

Anteontem (11), fui ao cinema com alguns amigos assistir atrasado ao segundo filme de “Os Incríveis”. Antes da sessão, conversávamos sobre alguns dos lançamentos recentes e um dos colegas confessou não ter se animado para conferir “Homem-Formiga e a Vespa”, que havia entrado em cartaz na semana anterior. Motivos não faltavam, mas acho que posso selecionar o principal: Saturação. Ou melhor, “saturação”. Explicarei.

O público de conteúdo Pop, que vai do cinemão até séries, música, quadrinhos etc., é, na falta de uma definição melhor, “eternamente insatisfeito”. Acho que sou assim e acho que todos vocês aí lendo também são. O segundo longa do Formigozo é o terceiro de uma ótima safra de produções dos estúdios Marvel esse ano. Quarto, se contarmos com “Deadpool 2”, da Fox. Todos diferentes entre si, mas equiparáveis em excelência.

No entanto, filmes de herói, ao momento, são comuns. Mal criam expectativas. Essa fatia se junta à outras franquias no “cinema de evento”, criando uma falsa sensação de saturação. Não é a toa que aquele meu amigo estava dando de ombros para o filme da Vespa, não é a toa que vários comentários beirando ao negativo surgem toda vez que um desses filmes, ainda que ótimos, são lançados, não é a toa que é regra a todos que querem pagar de cultos desdenhar de algo legal apenas por sua popularidade (as temporadas mais recentes de “Stranger Things” e “Black Mirror” entram na roda).

E o que isso tem a ver com uma resenha de álbum da Utada Hikaru? Vamos lá…

A Utada é um nome enorme dentro do nicho Pop japonês. Enorme a ponto de ser respeitada dentro de sua cena por artistas de públicos variados, enorme a ponto de ser sempre uma das primeiras alternativas em exemplares musiqueiros quando, internacionalmente, falam de representantes nipônicos. Enorme para unir tribos distintas como fãs de divas Pop e otakus num mesmo balaio. Lembro que, quando criança, numa rádio aqui no Rio de Janeiro, que não era pirata, costumavam tocar algumas canções dela durante a programação, mesmo não tendo existido (ao menos não publicamente) qualquer plano de fazê-la acontecer cantando em japonês por aqui.

Enorme o bastante para quase vagar um espaço no mercado quando decidiu “se aposentar” em 2010, com o arquétipo de “diva” solista diminuindo mais e mais conforme os anos passavam. O que, em parte, justifica todo o hype despertado no público para o seu retorno dois anos atrás com o implacável “Fantôme”, que considero seu melhor álbum em todos os tempos. Mas a “falta de hype” quanto ao recém-lançado Hatsukoi, na verdade, se justifica por aquilo que falei lá em cima.

A ausência da Utada nessa cena fez com que todo o ciclo de trabalho da era anterior, somada ao contexto de promoção e ao enredo fúnebre descrito em algumas das canções, fez com que o “Fantôme” fosse um retorno ainda melhor do que poderia ser. Já ao “Hatsukoi”, foi colocada uma sequência de produção normal ao meio, com singles sendo lançados e fechando um momento dentro de um CD. Com isso, assim como os filmes de herói, a presença da Utada se tornou ordinária, numa “saturação” (que não é bem saturação, mas enfim) de imagem que não permitiu a criação de expectativas maiores para o que viria.

Digo isso levando em conta não só alguns outros meios de mídia que falam sobre asian pop que eu acompanho, que não repetiram a festa em comentários ocorrida dois anos atrás, mas também fazendo uma mea culpa quanto ao meu atraso para comentar esse álbum. Eu de verdade demorei demais para ouvir mais a fundo esse trabalho comemorativo de duas décadas de carreira. Totalmente me enquadro, nesse sentido, no estereótipo do fã de cultura Pop “eternamente insatisfeito” bobão, pois ansiava por lançamentos frequentes da Utada, mas agora não os tenho aproveitado como deveria. Ainda mais por o nível deles estar tão alto, tão equiparável aos momentos de ápice em sua carreira.

O “Hatsukoi” é um PUTA ÁLBUM. Muito bom MESMO. Não há nada nele dispensável, filler. Todas as canções presentes na tracklist, ainda que repetindo fórmulas vistas em outros momentos da cantora, acertam em cheio no que se propõem.

A faixa que dá título ao álbum (e é também uma referência ao “First Love”, primeiro de sua carreira), estaria em casa no “Fantôme”, tal é a semelhança com o tipo de instrumental utilizado nele – ou seja, é tão ótima quanto. Começa mais tímida, com vários elementos orquestrais surgindo conforme as estrofes passam, criando um grande final emocionante e passional.

Essa mesma ligação instrumental com o LP anterior, como se pudessem habitar ambos sem qualquer alteração, pode ser notada em outros momentos: Em Play a Love Song, que abre a tracklist, quase uma irmã mais nova de “Michi”, que ocupava essa mesma posição. O instrumental é vibrante, dançante, mas há uma emotividade no modo como ela interpreta a letra que cria um gosto agridoce aos ouvidos, uma felicidade melancólica. Na lindíssima Oozora de Dakishimete, uma das minhas favoritas do ano passado, também vai naquilo de os elementos irem sendo adicionados, substituídos, até um ápice lá no final.

Em outros pontos, essa referência acaba se somando a outras, criando híbridos do orquestramento anterior com outros pontos já explorados por ela, todos tão legais quanto. Anata, por exemplo, me remete ao R&B/Pop de sua carreira ocidental, mais ousado, sacana, inclusive com a interpretação ligeiramente mais malemolente que ela costumava colocar em tais releases.

Chikai é estranha em seu andamento, com entradas sônicas que parecem destoantes entre si, em tempos diferentes, mas se completa a partir da voz da Utada, extremamente dinâmica, intensa, hipnótica. Good Night respira Rock noventista, mas também tem um pé na nossa Bossa Nova. Pakuchii no Uta também, mas de uma maneira mais adocicada. Forevermore, também já conhecida, flerta com Tango, brinca com várias rotinas melódicas como se toda a canção fosse um grande refrão. Todas, novamente, sendo aos poucos alimentadas por elementos orquestrais grandiosos, numa meiuca entre a Utada que vimos na era passada e uma Utada que quer explorar novos horizontes.

E quando ela quer entregar coisas totalmente diferentes, também acerta. Em Too Proud, um dos momentos mais inusitados de toda a lista de faixas – e um dos meus favoritos -, temos a Utada quase farofando num pc music trend, recheadinho de auges estranhos e portando um refrão matador. Nokoriga mescla um órgão de igreja com sintetizadores e bateria eletrônica, resultando em algo estupendo, cantado usando sei lá quantos registros e técnicas vocais capazes de elevar ainda a dinâmica de uma ballad.

Yuunagi também é super bonita, lembrando números parecidos do Coldplay (os bons) em seu instrumental e afinação dramáticos, tristes. Shittosarerubeki Jinsei, lá no fim, pula pro Dance alternativo, World Music, excelente, diferente de todo o resto em escolhas instrumentais, mas ainda com aquela veia sentimental presente, que é o que torna em unidade toda a tracklist.

E o gosto que fica ao final é o melhor possível. O “Hatsukoi” me soa não só como uma boa homenagem às duas décadas de estrada da Utada, pegando várias referências já executadas por ela, como serve perfeitamente como um trabalho de transição. A artista que todos conhecem dos anos 2000 ainda está lá, a que retornou dois anos atrás também, ambas montando o que é a Utada de hoje. O que é mostrado não é exatamente novidade, mas, assim como os filmes citados da Marvel, agrada, cumpre seu papel com excelência, é tão incrível quanto o já feito antes.

Nota 9,0

E, huh, dica do titio Lunei para a vida: não “se castiguem” por o mercado Pop estar recheado de boas coisas a serem consumidas. Temos a falsa impressão de que estamos saturados de informação, mas, acreditem, seria muito pior caso fosse o contrário. Aproveitem as vacas gordas e se divirtam ouvindo, lendo e assistindo tudo o que vocês quiserem, ainda que digam que é mais do mesmo, que são fórmulas batidas.


Texto originalmente postado no blog Esquadrão Lunático, no dia 13 de julho de 2018.

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